quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O menino capoeira e o Estado assassino

O caso do menino capoeirista Joel Conceição Castro, 10, morto dentro de sua própria casa na noite do último domingo durante uma ação policial no bairro do Nordeste de Amaralina, escancara a insanidade de nossa sociedade.  O garoto, prodígio do grupo capoeira Gingado Baiano, saiu das cores suaves de sonho da propaganda institucional do governo, voltada para atrair turistas em torno da cultura afrodescendente baiana, direto para as cores duras da realidade da violência urbana, que ceifa a vida de jovens da nossa capital, em sua maioria esmagadora pobres e negros.

No enterro do pequeno capoeira, palavras brotaram como desabafos para além da justa revolta dos familiares, amigos e vizinhos de Joel. Mestres de capoeira, líderes comunitários e membros do movimento negro fizeram um chamamento à comunidade do Nordeste - válida para demais bairros populares onde vige o império da barbárie - de que é necessária uma luta política de inclusão dos espaços pobres dentro do Estado de Direito Democrático. 

Discursos como o do fundador do Movimento Atitude Quilombola no Nordeste de Amaralina, Wilson Queiroz, denotam uma consciência que transcende o recorte específico da tragédia: "Há um certo tipo de genocídio nas favelas.  Não temos mais a quem recorrer. Estamos morrendo no Nordeste, no Subúrbio, na Liberdade. O sistema fez a violência entrar em nossas casas. A capoeira tem poder. Está na Europa. Ela deve movimentar a Europa e a ONU (Organizações da Nações Unidas)", disse o líder comunitário.

As palavras muitas vezes soaram segregacionistas, pintando um quadro no qual brancos executam negros. Os afrodescendentes - 80% da população de Salvador e na maioria pobre - sem dúvida são as maiores vítimas da violência urbana, e por isso se faz compreensível o entendimento ali exposto - mas a sociedade, especialmente nos âmbitos brancos e elitistas, não deve entender a realidade por esse prisma, acentuando os contornos de um apartheid socioeconomico vigente, escondendo-se atrás da falsa prerrogativa de que tamanha violência não bate à porta ou não estraçalha à bala a janela do quarto do lar para em seguida esfacelar a cabeça do filho querido. 

Infelizmente, estamos nesse patamar, fazendo ouvidos surdos para o drama de milhares de Joeis periferia afora, vivendo a farsa de uma pseudo liberdade e escassa democracia. Ou poderíamos considerar livres cidadãos que estão submetidos a blitz policiais intensivas pelas ruas, todos a princípio suspeitos até que provem a inocência depois da auditoria do Estado vigilante? Ou somos ingênuos a ponto de acreditar que estamos assim protegidos, que podemos então lavar as mãos e esquecer? Ou não lembramos que o idoso Isnard Costa, 73, foi assassinado dentro de seu apartamento no mesmo último fatídico domingo, localizado no Corredor da Vitória? Ou não lembramos que o juiz Carlos Alessandro Pitágoras foi morto, em julho, numa briga de trânsito, pelo PM Daniel dos Santos Soares?

Uma sociedade que demanda um Estado violento e vigilante está doente. Pagamos uma polícia militar para certificar nossa inocência enquanto ela mata os inocentes de verdade.  A PM é nosso espelho, tão vítima e algoz quanto a sociedade que construímos e o Estado que legitimamos.