quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Reflexões políticas sobre a greve da PM na Bahia

As dimensões que ganhou a greve da PM baiana revelam um cenário político perigoso no País hoje, seja pelo legado histórico que possibilitou tal conjuntura, seja pelas consequências que delas poderão se consolidar, já numa hipótese mais pessimista e subversiva da interpretação dos fatos.

Registro, incialmente, um quadro antecedente à greve: policiais mal pagos, oriundos das camadas populares subalternas, moradores de bairros periféricos e degradados, vizinhos de operadores da criminalidade contra a vida, sujeitos a códigos de ética permissivos ao abuso e ao assédio moral (podem ser presos por uma barba por fazer, por exemplo), treinados em esquemas militares repressivos contrários à construção da cidadania, em que se predominam o racismo, a discriminação e a violência gratuita aos irmãos de cor e de classe; tudo em prol da sustentação de uma ordem favorável à proteção, em tese, de toda a população e do patrimônio público, que na prática não passa de garantia da integridade física e econômica de uma elite dominante e privatista. Ainda vivem reminiscências recentes de policiais convocados para garantir que qualquer cidadão, por ordem judicial, fosse impedido de adentrar a praça pública de Ondina, onde empresários ganharam, da prefeitura, o direito de construir por dez anos um camarote, com ingressos a preço de ouro, durante o Carnaval de Salvador.
Neste mesmo primeiro quadro conjuntural, tem-se uma imprensa (da qual eu faço parte e muitas vezes fui entusiasta) insistentemente apontando o caráter homicida da PM, que imersa em uma guerra civil velada pelos morros e favelas das capitais brasileiras, não se furta do monopólio estatal da violência e não se constrange em esconder o abuso dessa prerrogativa na maquiagem estatística sob a rubrica de auto de resistência.  As críticas pertinentes a esse descalabro foram muitas, inclusive acertadamente cobrando do Estado uma política de segurança pública mais salutar, no entanto, as denúncias jornalísticas das condições precárias da PM foram bem menos incisivas e recorrentes.
Não cabe resumir aqui os desdobramentos e prejuízos causados pela atual greve da PM na Bahia, tampouco aqueles causados pela paralisação de 2001. Em um segundo momento, minha preocupação é ver uma série de movimentos paredistas militares ocorrendo Brasil afora, nos últimos 15 anos, diante de uma letargia da sociedade civil e, sobretudo, da sociedade política, a ponto do Estado brasileiro, por um lado, não ter se arvorado em melhorar as condições materiais dos PMs (descritas acima) , e, por outro, ter concedido por duas vezes (Lula, em 2010; e Dilma, em 2011) anistia aos policiais participantes de greves de 1997 até o ano passado.
É uma combinação de fatores e aspectos, no mínimo, arriscada, a ponto de não surpreender que haja um desejo e vontade incontidos das PMs estaduais de promover um movimento grevista nacional nas portas do Carnaval, envolvendo ao menos mais seis estados, segundo admitiu o próprio governo federal: Pará, Paraná, Rio de Janeiro, Alagoas, Rio Grande do Sul e São Paulo.  É uma evidência clara, que a trancos e barrancos, e não sob uma condução política bem formada e responsável, a categoria militar tomou uma consciência, muito perigosa, que chegou a hora de pressionar os mandantes civis a valorizar seu trabalho de braço armado promotor da manutenção do status quo, sob pena desse mesmo ser mandado para o espaço, ainda que seja uma missão inglória, dado o artifício poderoso da incursão das Forças Armadas para frear os possíveis levantes.  Mas que sociedade democrática pode se sustentar, tempos em tempos, refém de uma relação conflitiva entre esferas civil e militar, e com atores desta última se tornando inimigos em campo urbano de batalha?
Os PMs, ou  “milicos”, para lembrar que a militarização da polícia de prevenção ainda é um resquício da ditadura, parecem ter cansado de saírem derrotados dentro da disputa desigual no campo do discurso, do político-legal, do técnico-administrativo. Veem frustradas as tentativas de valorização socioeconômica, por barreiras legislativas no Congresso Nacional e por julgamentos reacionários na mídia. Disso, foi um pulo para jogar por terra a estratégia democrática e politicamente mais acertada de ganhar a opinião pública, sempre, com razão, contrária a atos de violência.  Não se pode conquistar a sociedade política antes da sociedade civil, a não ser por um golpe. Mas tenho forte esperança e convicção que tal possibilidade não passa de um grande devaneio, meu e deles.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Magary contra o discurso elitista

 José Pereira, leitor da revista Muito, do Grupo A TARDE, realizou o seguinte comentário na última edição da mídia impressa semanal: “Magary Lord é lixo musical”.  Argumentou que os recentes fenômenos da música baiana alçados, instantaneamente, à condição de ícones da cultura são resultantes de uma população sem educação em conjunto a uma imprensa não criteriosa, atinente apenas aos pontos do Ibope, comportamento que acaba por reforçar fórmulas culturais pobres e emburrecedoras.
           
Tal discurso não é novo. Muda apenas de objeto, de alvo.  Antes e sempre o pagode e a Axé Music. Agora, eles mais o Semba. As reflexões que deste discurso desdobram também nada têm de inédito. A questão central, por elas permeadas, é até que ponto as duras e severas críticas à qualidade das composições musicais baianas são razoavelmente legítimas, ou tornam-se puro reflexo de percepções elitistas, preconceituosas, discriminatórias e, portanto, raivosas e totalitárias.

De antemão, anuncio que a crítica de José Pereira é mal-educada. Por excessivamente agressiva, perdeu o direito original de ganhar forma como mais uma opinião, ao declarar um sentimento sectário, e não apenas seu desgosto ao baixo grau de sofisticação de letras dos pagodes Bahia afora. Da pobreza literária destas canções, não há margem para dúvida, tampouco espaço para, valendo-se de louvores às manifestações populares, defender com unhas e dentes certos tipos de rimas e “poesias”.

Neste segundo momento, anuncio que José Pereira confundiu alhos com bugalhos. Há uma diferença enorme de qualidade musical entre a maioria dos pagodes baianos e a música de Magary Lord, um mix do Semba, ritmo de Angola - espécie de samba de salão africano - com fortes pitadas de kuduro, outro ritmo da África. O resultado dessa fusão de gêneros angolanos é uma expressão corporal explosiva, de não deixar parados os mais resistentes ao molejo do corpo. E, diferente da maioria dos pagodes atuais (com raras e gratificantes exceções, a exemplo da Harmonia do Samba, e do Psirico em algumas canções), não se repetem ali, ad infinutum e ad nauseaum, sons monocórdios irritantes a ouvidos mais sensíveis, mesmo àqueles de sensibilidade mediana, em letras de constranger e ruborizar os menos preocupados com a beleza literária e o rigor formal, embora popular, da língua materna.

Ainda ontem à noite, na Concha Acústica do Festival de Verão 2012, realizado em Salvador de 25 a 28 de janeiro, no Parque de Exposições,  Margary Lord agitava uma multidão, de crianças a adultos, de pobres a ricos, de negros a brancos, que, no bom baianês, quebrou a até o último fio do cabelo, ou até a unha do pé.  Foi uma comunhão de expressões corporais diversas, uma troca carnal de cultura, que, longe de atingir a supremacia literária de Caetanos, Gils, Chicos e outros, tampouco empobreceu as cognições e percepções vocabulares do bom Português poético. Lembrando um tal de Carlinhos, a música de Magary fez as sonoridades instrumental e silábica se harmonizarem, sem maiores dificuldades. Yeba! Seja lá que isso signifique...