quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Reflexões políticas sobre a greve da PM na Bahia

As dimensões que ganhou a greve da PM baiana revelam um cenário político perigoso no País hoje, seja pelo legado histórico que possibilitou tal conjuntura, seja pelas consequências que delas poderão se consolidar, já numa hipótese mais pessimista e subversiva da interpretação dos fatos.

Registro, incialmente, um quadro antecedente à greve: policiais mal pagos, oriundos das camadas populares subalternas, moradores de bairros periféricos e degradados, vizinhos de operadores da criminalidade contra a vida, sujeitos a códigos de ética permissivos ao abuso e ao assédio moral (podem ser presos por uma barba por fazer, por exemplo), treinados em esquemas militares repressivos contrários à construção da cidadania, em que se predominam o racismo, a discriminação e a violência gratuita aos irmãos de cor e de classe; tudo em prol da sustentação de uma ordem favorável à proteção, em tese, de toda a população e do patrimônio público, que na prática não passa de garantia da integridade física e econômica de uma elite dominante e privatista. Ainda vivem reminiscências recentes de policiais convocados para garantir que qualquer cidadão, por ordem judicial, fosse impedido de adentrar a praça pública de Ondina, onde empresários ganharam, da prefeitura, o direito de construir por dez anos um camarote, com ingressos a preço de ouro, durante o Carnaval de Salvador.
Neste mesmo primeiro quadro conjuntural, tem-se uma imprensa (da qual eu faço parte e muitas vezes fui entusiasta) insistentemente apontando o caráter homicida da PM, que imersa em uma guerra civil velada pelos morros e favelas das capitais brasileiras, não se furta do monopólio estatal da violência e não se constrange em esconder o abuso dessa prerrogativa na maquiagem estatística sob a rubrica de auto de resistência.  As críticas pertinentes a esse descalabro foram muitas, inclusive acertadamente cobrando do Estado uma política de segurança pública mais salutar, no entanto, as denúncias jornalísticas das condições precárias da PM foram bem menos incisivas e recorrentes.
Não cabe resumir aqui os desdobramentos e prejuízos causados pela atual greve da PM na Bahia, tampouco aqueles causados pela paralisação de 2001. Em um segundo momento, minha preocupação é ver uma série de movimentos paredistas militares ocorrendo Brasil afora, nos últimos 15 anos, diante de uma letargia da sociedade civil e, sobretudo, da sociedade política, a ponto do Estado brasileiro, por um lado, não ter se arvorado em melhorar as condições materiais dos PMs (descritas acima) , e, por outro, ter concedido por duas vezes (Lula, em 2010; e Dilma, em 2011) anistia aos policiais participantes de greves de 1997 até o ano passado.
É uma combinação de fatores e aspectos, no mínimo, arriscada, a ponto de não surpreender que haja um desejo e vontade incontidos das PMs estaduais de promover um movimento grevista nacional nas portas do Carnaval, envolvendo ao menos mais seis estados, segundo admitiu o próprio governo federal: Pará, Paraná, Rio de Janeiro, Alagoas, Rio Grande do Sul e São Paulo.  É uma evidência clara, que a trancos e barrancos, e não sob uma condução política bem formada e responsável, a categoria militar tomou uma consciência, muito perigosa, que chegou a hora de pressionar os mandantes civis a valorizar seu trabalho de braço armado promotor da manutenção do status quo, sob pena desse mesmo ser mandado para o espaço, ainda que seja uma missão inglória, dado o artifício poderoso da incursão das Forças Armadas para frear os possíveis levantes.  Mas que sociedade democrática pode se sustentar, tempos em tempos, refém de uma relação conflitiva entre esferas civil e militar, e com atores desta última se tornando inimigos em campo urbano de batalha?
Os PMs, ou  “milicos”, para lembrar que a militarização da polícia de prevenção ainda é um resquício da ditadura, parecem ter cansado de saírem derrotados dentro da disputa desigual no campo do discurso, do político-legal, do técnico-administrativo. Veem frustradas as tentativas de valorização socioeconômica, por barreiras legislativas no Congresso Nacional e por julgamentos reacionários na mídia. Disso, foi um pulo para jogar por terra a estratégia democrática e politicamente mais acertada de ganhar a opinião pública, sempre, com razão, contrária a atos de violência.  Não se pode conquistar a sociedade política antes da sociedade civil, a não ser por um golpe. Mas tenho forte esperança e convicção que tal possibilidade não passa de um grande devaneio, meu e deles.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Magary contra o discurso elitista

 José Pereira, leitor da revista Muito, do Grupo A TARDE, realizou o seguinte comentário na última edição da mídia impressa semanal: “Magary Lord é lixo musical”.  Argumentou que os recentes fenômenos da música baiana alçados, instantaneamente, à condição de ícones da cultura são resultantes de uma população sem educação em conjunto a uma imprensa não criteriosa, atinente apenas aos pontos do Ibope, comportamento que acaba por reforçar fórmulas culturais pobres e emburrecedoras.
           
Tal discurso não é novo. Muda apenas de objeto, de alvo.  Antes e sempre o pagode e a Axé Music. Agora, eles mais o Semba. As reflexões que deste discurso desdobram também nada têm de inédito. A questão central, por elas permeadas, é até que ponto as duras e severas críticas à qualidade das composições musicais baianas são razoavelmente legítimas, ou tornam-se puro reflexo de percepções elitistas, preconceituosas, discriminatórias e, portanto, raivosas e totalitárias.

De antemão, anuncio que a crítica de José Pereira é mal-educada. Por excessivamente agressiva, perdeu o direito original de ganhar forma como mais uma opinião, ao declarar um sentimento sectário, e não apenas seu desgosto ao baixo grau de sofisticação de letras dos pagodes Bahia afora. Da pobreza literária destas canções, não há margem para dúvida, tampouco espaço para, valendo-se de louvores às manifestações populares, defender com unhas e dentes certos tipos de rimas e “poesias”.

Neste segundo momento, anuncio que José Pereira confundiu alhos com bugalhos. Há uma diferença enorme de qualidade musical entre a maioria dos pagodes baianos e a música de Magary Lord, um mix do Semba, ritmo de Angola - espécie de samba de salão africano - com fortes pitadas de kuduro, outro ritmo da África. O resultado dessa fusão de gêneros angolanos é uma expressão corporal explosiva, de não deixar parados os mais resistentes ao molejo do corpo. E, diferente da maioria dos pagodes atuais (com raras e gratificantes exceções, a exemplo da Harmonia do Samba, e do Psirico em algumas canções), não se repetem ali, ad infinutum e ad nauseaum, sons monocórdios irritantes a ouvidos mais sensíveis, mesmo àqueles de sensibilidade mediana, em letras de constranger e ruborizar os menos preocupados com a beleza literária e o rigor formal, embora popular, da língua materna.

Ainda ontem à noite, na Concha Acústica do Festival de Verão 2012, realizado em Salvador de 25 a 28 de janeiro, no Parque de Exposições,  Margary Lord agitava uma multidão, de crianças a adultos, de pobres a ricos, de negros a brancos, que, no bom baianês, quebrou a até o último fio do cabelo, ou até a unha do pé.  Foi uma comunhão de expressões corporais diversas, uma troca carnal de cultura, que, longe de atingir a supremacia literária de Caetanos, Gils, Chicos e outros, tampouco empobreceu as cognições e percepções vocabulares do bom Português poético. Lembrando um tal de Carlinhos, a música de Magary fez as sonoridades instrumental e silábica se harmonizarem, sem maiores dificuldades. Yeba! Seja lá que isso signifique...

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O Palhaço que faz rir e chorar

Sinceramente não me lembro de criança ter me deliciado, aos risos, e olhos brilhantes, como espectador de uma trupe circense, qual fosse sua simplicidade ou sofisticação.  Duvido até se tenha adentrado, ainda na infância, uma lona de um circo. Já adulto, estive em pelo menos três como repórter, noticiando, infelizmente, fatos bem distantes de um mundo vendedor de ilusões - de maus-tratos a animais a acidentes graves em picadeiros.

Em 2009, fui prestigiar uma apresentação do Cirque Du Soleil. O maior e mais famoso circo do mundo esteve em Salvador com o espetáculo Quidam. Foi fantástica, mas talvez a execessiva expectativa de destreza e habilidade performática dos atores circenses tenha tirado a aura lúdica e encantadora que o circo pressupõe.

O Palhaço, filme de Selton Mello,  preencheu meu suposto vazio de infância e resgatou o encantamento da arte circense, aflorando uma beleza artística de emocionar os mais austeros por meio da narrativa simples de um circo humilde e pobre em harmonia com uma estética primorosa, pela linguagem cinematográfica, de formas e gestos da vida por detrás do picadeiro.

Benjamim, personagem interpretado pelo ator, coloca em cena o drama existencial de um homem em dúvida sobre sua vocação. E por esse fio-condutor narrativo, as lindas imagens fluem aos olhos dos espectadores sobre um pano de fundo das dificuldades e prazeres da vida cotidiana, lúdica e real.

Imperdível e inesquecível....

terça-feira, 26 de julho de 2011

Tributo a Amy


Ouvi mais Amy Winehouse esses últimos três dias, após sua morte trágica, do que costumava escutar tempos antes. Na enxurrada de posts - áudios e vídeos - disponíveis na Internet, entristece-me a quantidade de registros de shows mostrando Amy como a sombra pálida dela mesma, um zumbi caricatural sem alma, roubada pelos excessos de toda sorte de entorpecentes, a ponto de nem seu talento assombroso poder recuperá-la.

O gênio Amy parecia ressuscitar alimentando-se das profundas feridas de seu espírito perturbado por uma tristeza depressiva. E todos, absolutamente todos - fãs, produtores, músicos, imprensa, familiares, amigos e médicos - sabiam disso. Era, como disse o crítico musical Nelson Motta, a crônica da morte anunciada da maior cantora do século XXI, até agora. 

Nada nem ninguém foi capaz de reabilitá-la. Amy disse não ao mundo e aceitamos de camarote sua derrocada, como se a genialidade fosse o passaporte para a autossuficiência. Mas não foi só uma interpretação equivocada, chegou mesmo ao sadismo. No Brasil, informaram os jornais, muitos foram aos show de Winehouse para vê-la "chapada", enquanto no Reino Unido, a imprensa sensacionalista se lambuzava com as atrapalhadas de uma famosa em decadência. 

No seio familiar, os pais foram incapazes de orientá-la. Não quero responsabilizá-los, mas um documentário exibido no Multishow mostrava o pai Mitchell Winehouse recebendo conselhos da psicóloga para não se culpar pelas barbaridades da filha. Já a mãe, Janis Winehouse, disse aos jornais, após a morte da cantora, que já se confomara há muito com o fim trágico, pois Amy "estava se matando". Pais não devem desistir dos filhos, ao menos no plano ético e moral, lembrando que olhar de fora sempre é muito mais fácil. 

Mas a ingenuidade sádica alcançou seu ápice pelas atitudes pouco compreensíveis, no prisma afetivo, da produção artística de Amy. Quando a artista negou-se a se internar numa clínica de reabilitação, seu produtor Salamm Remi estimulou a composição da canção Rehab, uma preciosidade para os ouvidos do mundo e um abismo ainda mais fundo para ela. E onde estava Remi quando permitia a esquálida,  frágil e alucinada Amy a subir no palco e expor aos holofotes canibais sua precariedade etílica e narcótica? As imagens da cantora branca de alma negra em um palco de Belgrado, na Sérvia, são de cortar o coração. Elas tornam factível algo quase impossível: tirar dos grandes artistas toda sua artisticidade, todo seu sopro de vida inimitável. 

Definitivamente, não se tratam gênios desse jeito. 

sábado, 9 de abril de 2011

A família e os fatalismos inexplicáveis da sociedade

Um mar de hipóteses e suposições brotam pela sociedade, na imprensa e à boca pequena, sobre o que teria levado e o que teria permitido o jovem Wellington Menezes de Oliveira, 24, ter realizado o massacre da última quinta-feira, 7, na escola municipal Tasso da Silveira, bairro do Realengo, no Rio de Janeiro, matando 11 crianças e a si mesmo logo em seguida.  Entre as causas, as possibilidades e as explicações há abismos. E o problema que nos tira o chão é justamente saber o que fazer com eles.

Fala-se de um perfil psicológico típico de uma pessoa capaz de realizar tamanha atrocidade. Wellignton era solitário, tinha um discurso fundamentalista - tanto político, filosófico e religioso -, era rejeitado pelas meninas, teria sofrido bullying, e fazia da introspecção uma revolta crescente impossível de conter em determinado momento. Aborda-se a falta de segurança nas escolas como um ponto crucial, já que uma simples revista na portaria teria evitado a entrada do garoto em posse de dois revólveres. E, por final, ressuscitou-se o debate sobre o porte de armas de civis, pela facilidade com que Wellington adquiriu o armamento - alguns, como o jornalista Luciano Martins Costa, parecem querer creditar à sociedade um mea-culpa da tragédia, porque os brasileiros foram contra, em referendo de 2005,  ao desarmamento.

O que teríamos de soluções possíveis?  1 - Um acompanhamento psicopedagógico especializado e intensivo em todas as escolas do País, públicas e particulares, capaz de identificar e tratar perfis potencialmente "surto-criminosos". 2 - Estabelecimentos de ensino com seguranças armados, dotados de mecanismos de revista, manual e eletrônico. 3 - A ilegalidade irrestrita do porte de arma por civis em conjunto a um controle e fiscalização massantes dos registros e da circulação de armas no território nacional. 

Tudo bem. Mas algum dia a análise psicopedagógica pode falhar. O equipamento eletrônico pode quebrar e o segurança, como ser humano que é, esquecer de revistar alguém ou mesmo ser induzido a não fazê-lo. E, como as drogas, as armas podem continuar sendo obtidas na ilegalidade, por mais eficaz que seja o sistema de controle.

Trata-se então de uma fatalidade? Algo contra o qual a sociedade está de mãos atadas? O governador Wagner, falando anteontem à imprensa sobre a tragédia, colocou o problema no colo da família. "A gente tem que repensar os valores da família para refletir o porquê da banalização da violência", afirmou (em reprodução livre deste blogueiro, de memória, sem checar as anotações).

A família é a base organizacional da nossa sociedade. Por isso, concordo com o governador. Parece estar na família as pistas e chaves de entendimento das relações saudáveis e doentias que se formam no tecido social, capazes de formar Wellingtons, Pedros, Josés, Marias, Sennas, Ronaldos, Georges, Dilmas etc... Porque a família aparece como a unidade social que assimila, reproduz e reinterpreta todo o espírito de uma sociedade e os efeitos de suas ferramentas de coesão social (Estado, mídia, trabalho, para ficar nos principais da contemporaneidade).

Se os tempos modernos do individualismo, da forte competitividade, da meritocracia da plutocracia ou vice-versa, tem provocado tiros em Columbine, no Rio de Janeiro, em São Paulo (baiano que fez massacre no cinema), em Salvador (jovem que matou dois colegas de sala, no colégio Sigma em 2002) é sinal de que algo essencial de sua constituição aponta para bem mais do que uma explicação de particularidade psicológica somada a uma inércia do sistema de repressão e monitoramento dos comportamentos.

De uma certa forma, a sociedade abandonou a família à sua própria sorte, enquanto deposita nela todas as cargas e sobrecargas de seu desenvolvimento. Parece-me que os abismos vêm da sociedade para a família, até que esta nos conceda, nos rompantes, as grandes fatalidades. E a partir daí, ficamos sujeitos às explicações da psiquiatria.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Do plágio à dependência intelectual

A matéria da edição de A TARDE de hoje, sobre a venda indiscriminada de monografias, dissertações e teses pela Internet, revela a indisposição crescente para o culto do pensamento e a patente inaptidão intelectual da nossa sociedade. Vivemos à esteira da ideologia do menor esforço e da estratégia para resultados mais fáceis e rápidos.

Sob a cultura da inteligência coletiva - esse termo conceitual caro à sociedade da informação digital desenvolvido pelo sociólogo Pierre Lévy - o abuso das citações bibliográficas culminou na apropriação indébita, sem pesares, de raciocínios, de ideias, na cópia desavergonhada e vergonhosa de trechos, páragrafos, capítulos, livros inteiros.

Mas tal prática não deveria causar tamanha surpresa e espanto. A indústria das universidades e dos centros de pesquisa, capitaneada pelo fetichismo do diploma (termo que ouvi pela primeira vez do querido professor doutor Monclar Valverde), já legitimou, com aplausos e honrarias, a quantidade de fontes e citações como critério para medir a qualidade de monografias, dissertações e teses, como também pôs em marcha, aparentemente irreversível, a política da divulgação e publicação científicas - levando a cientistas Brasil afora a dizerem algo mesmo quando não têm nada de relevante a dizer, tudo no afã de conquistar as verbas das agências fomentadoras de pesquisas.

Ainda lembro de um dos professores da recente banca para ingresso no Mestrado de Ciências Sociais, na qual fui reprovado. Ele considerou meu projeto "impressionista", ou seja, pautado por impressões pessoais desprovidas de embasamento teórico. Talvez tenha razão. A qualidade teórica do meu projeto não vem ao caso agora - sei que estudei pelo menos oito autores do tema tratado, mas nunca tive a intenção de usá-los como muletas.

No entanto, após algumas reflexões, minha opinião, sim, isso mesmo, minha opinião, é de que os pensadores deste País tenham perdido a coragem de dizer realmente o que pensam, de criar um pensamento autônomo. Preferem, na maioria da vezes, esconder-se nas elocubrações alheias, eivadas de um tecnicismo conceitual burocrático e alienante, sem paralelo com a realidade, sem qualquer traço de um diletantismo à arte do pensamento.

Daqui a alguns anos, o quadro será ainda mais trágico. Não se tratará apenas da falta de coragem, ou vontade de independência intelectual, mas de conhecimento. Eu penso todos os dias no impressionismo do meu projeto e não tenho medo de enfrentá-lo.       

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Não gosto do Natal, mas dos presentes

Então, foi Natal... E ainda vejo crianças negras, maltrapilhas, pseudo-sorridentes, com suas caixinhas forradas de papel cartolina, lançando-se sobre os vidros fumês dos carros à procura, muitas vezes encorajadas pelos pais, de uma nica, uma moeda qualquer, uma migalha de presente natalino. Dançam, realizam malabarismo, dramatizam, em rostos tristes forjados, a carência que lhes é habitual e rotineira.

Mas daqui a alguns dias vão desaparecer da mesma forma "mágica" com que apareceram aos montes nessas últimas horas de espírito cristão. E voltarão ao total esquecimento. A verdade é que até esse período, de elevação espiritual humana, transforma-se em evento, em oportunidade de capitalização. E, infelizmente, nossas crianças sabem disso, seus pais sabem disso, só a gente, da turma aqui do Natal, que ignora, ou finge não saber.

E aí tratamos de abrir nossos vidros fumês elétricos com a ponta dos nossos dedos, para com os mesmos depositarmos solidariamente e lamentosos duas ou três niquinhas de Real, seja naquela caixinha horrosa de cartolina, seja nas pequenas mãos sujas que nos tira o peso das costas até o próximo Natal. Como se houvesse um acordo social tácito de que a mercantilização da solidariedade devesse ser sazonal e a forma menos evidente para mascarar a condição egoísta do homem capitalista.

Eu, inclusive, já despejei alguns míseros centavos, dei um sorriso receptivo e recebi um "obrigado" formal e singelo de gratidão. Agora estou aqui escrevendo as baboseiras que provam minha tamanha e natural hipocrisia. Foi longe de centavos o que gastei para presentear pessoas queridas e mais próximas.  Na verdade, nunca gostei de Natal. Porque ele faz parecer que o altruísmo é um valor nosso, dos seres humanos. Porque ele consegue mascarar que a solidariedade humana é uma moeda de troca. 

Em raríssimas vezes, tal solidariedade não esconde ou um interesse material (ganhar um presente legal também) ou um pretensioso e suposto acerto de contas com nosso egoísmo e mesquinharia, sendo, assim, mais egoístas e mesquinhos que outrora, com o agravo de sermos, nesse momento, mais dissimulados.

Na verdade, eu nunca gostei de Natal. Porque ele me faz ver que não estamos nem aí  para os meninos pedintes nas sinaleiras. Eles nos agridem, incomodam, mas, por fim, concedem-nos penitência de pecados que nunca cometemos. "Feliz Natal" é tudo o que Capitalismo sempre quis desejar ao Cristianismo. A moral cristã é a mesma daquela capitalista. Ou melhor, a solidariedade sempre teve o seu preço e seu marketing.  É evento socioeconomico, nada mais. Tiremos dele a magia e a espiritualidade que nunca teve de direito.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O menino capoeira e o Estado assassino

O caso do menino capoeirista Joel Conceição Castro, 10, morto dentro de sua própria casa na noite do último domingo durante uma ação policial no bairro do Nordeste de Amaralina, escancara a insanidade de nossa sociedade.  O garoto, prodígio do grupo capoeira Gingado Baiano, saiu das cores suaves de sonho da propaganda institucional do governo, voltada para atrair turistas em torno da cultura afrodescendente baiana, direto para as cores duras da realidade da violência urbana, que ceifa a vida de jovens da nossa capital, em sua maioria esmagadora pobres e negros.

No enterro do pequeno capoeira, palavras brotaram como desabafos para além da justa revolta dos familiares, amigos e vizinhos de Joel. Mestres de capoeira, líderes comunitários e membros do movimento negro fizeram um chamamento à comunidade do Nordeste - válida para demais bairros populares onde vige o império da barbárie - de que é necessária uma luta política de inclusão dos espaços pobres dentro do Estado de Direito Democrático. 

Discursos como o do fundador do Movimento Atitude Quilombola no Nordeste de Amaralina, Wilson Queiroz, denotam uma consciência que transcende o recorte específico da tragédia: "Há um certo tipo de genocídio nas favelas.  Não temos mais a quem recorrer. Estamos morrendo no Nordeste, no Subúrbio, na Liberdade. O sistema fez a violência entrar em nossas casas. A capoeira tem poder. Está na Europa. Ela deve movimentar a Europa e a ONU (Organizações da Nações Unidas)", disse o líder comunitário.

As palavras muitas vezes soaram segregacionistas, pintando um quadro no qual brancos executam negros. Os afrodescendentes - 80% da população de Salvador e na maioria pobre - sem dúvida são as maiores vítimas da violência urbana, e por isso se faz compreensível o entendimento ali exposto - mas a sociedade, especialmente nos âmbitos brancos e elitistas, não deve entender a realidade por esse prisma, acentuando os contornos de um apartheid socioeconomico vigente, escondendo-se atrás da falsa prerrogativa de que tamanha violência não bate à porta ou não estraçalha à bala a janela do quarto do lar para em seguida esfacelar a cabeça do filho querido. 

Infelizmente, estamos nesse patamar, fazendo ouvidos surdos para o drama de milhares de Joeis periferia afora, vivendo a farsa de uma pseudo liberdade e escassa democracia. Ou poderíamos considerar livres cidadãos que estão submetidos a blitz policiais intensivas pelas ruas, todos a princípio suspeitos até que provem a inocência depois da auditoria do Estado vigilante? Ou somos ingênuos a ponto de acreditar que estamos assim protegidos, que podemos então lavar as mãos e esquecer? Ou não lembramos que o idoso Isnard Costa, 73, foi assassinado dentro de seu apartamento no mesmo último fatídico domingo, localizado no Corredor da Vitória? Ou não lembramos que o juiz Carlos Alessandro Pitágoras foi morto, em julho, numa briga de trânsito, pelo PM Daniel dos Santos Soares?

Uma sociedade que demanda um Estado violento e vigilante está doente. Pagamos uma polícia militar para certificar nossa inocência enquanto ela mata os inocentes de verdade.  A PM é nosso espelho, tão vítima e algoz quanto a sociedade que construímos e o Estado que legitimamos.

sábado, 23 de outubro de 2010

Luz aos acontecimentos, enfim

O Estado de São Paulo lançou um pouco de luz ao abismo em que o cidadão brasileiro vem caindo nesses dias de recorrentes trocas de acusações mútuas entre petistas e tucanos e, mais grave, de um imenso bombardeio de matérias jornalísticas com versões partidárias, interesseiras e distorcidas. Estávamos à beira de uma república niilista, diante de uma histórica descrença pública nos políticos brasileiros, salvo raras exceções, e do descrédito total a uma imprensa de um lado golpista (Globo, Veja, Folha de S. Paulo) e de outro quase chapa branca (Istoé, Carta Capital, Record).

Tiro o Estado de São Paulo do bolo não por inclinações ao jornal, mas porque teve a coragem de divulgar o depoimento na íntegra do grande protagonista dessa sujeirada eleitoreira a que estamos submetidos nos últimos dias. Falo do jornalista Amauri Ribeiro Júnior. À Polícia Federal, ele de fato afirmou que investigava José Serra, em nome do jornal Estado de Minas, que pretendia proteger Aécio Neves das investidas investigativas do presidenciável tucano, cujo objetivo era produzir um dossiê contra o político mineiro a fim de pressioná-lo a desistir da sua candidatura à presidência.

Amauri Ribeiro também confirma que o material coletado das suas investigações apontam para o envovimento de José Serra nas operações suspeitas de privatização de estatais brasileiras na era FHC, inclusive da filha do tucano, Verônica Serra, através de contas em paraísos fiscais. Mas o PT também não é poupado. O jornalista aponta para uma briga interna dentro do partido, cujo epicentro de conflito seria o controle da comunicação da campanha de Dilma Roussef. Tal conflito teria gerado o vazamento dos dados sigilosos de familiares de Serra e outros tucanos à imprensa.

Veja aqui o depoimento na íntegra. 

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A democracia mostrou seu fígado

Minha opinião diverge de todos os discursos moralistas e assépticos sobre esse momento da política brasileira. A campanha eleitoral em nível abaixo da linha de cintura, para usar um jargão do boxe, expõe nosso fígado, quando digo nosso, estou falando da democracia brasileira. E serve para assustar os mais crédulos desse nome que é igual a picolé na boca de criança, uma vez com ele não se quer mais largar. Também serve para alertar os mais céticos, de que o veneno de cobra pode funcinar, em doses controladas e certeiras.

Em meio a essa sujeirada toda, levada a cabo por petistas e tucanos, ficamos atentos que era preciso aprimorar os mecanismos de guarda dos dados sigilosos da Receita Federal. Embora já fosse notório o vão do sistema, a mídia só na eleição jogou o problema à esfera pública na dimensão que carecia, embora por caminhos tortuosos e distorcidos, balizados pela disputa eleitoreira e não pelos certames da segurança jurídica e fiscal dos brasileiros.

Pelos mesmos subterfúgios, e aí devam-se, em parte, os louros à imprensa tupiniquim, desmascarou-se a Erenice Guerra e seus tentáculos na Casa Civil e lembraram-se os esquemas de um certo Paulo Preto e suas relações com o candidato José Serra, servindo para tirar de exclusivos do lulopetismo os atos mais suspeitos e escandalosos. Isso é saudável ao processo político, não estou blefando. A politica em nenhum momento serviu-se do altruísmo para fazer valer suas premissas, por mais humanitárias e justificáveis se apresentassem. E a imagem pudica a qualquer político profissional não pode corresponder sempre, nem ajudar, a uma democracia em construção, como a nossa.  

Mas não bastassem tantos suplementos à robustez do poder de nosso povo, veio a "tsunami" ou seria "marola" do engajamento e poder religiosos, travestido da questão sobre o aborto. Pronto. Expusemos nosso fígado, jogamos ele para fora. A política está condicionada a um pathos. A nada mais brasileiros estão tão assujeitados que suas próprias convicções de fé, e, portanto, também religiosas. Resumindo, nossa política é pessoal, personalista e patológica. 

Daí porque a polêmica serviu para escancarar que a democracia brasileira é tão racional quanto a laicidade do entendimento do povo, ainda que seu Estado, por definição, seja laico. Se o povo reza, ora e pede a Deus, não há democracia agnóstica que inverta a ordem das coisas. E, lembro, a religiosidade é a maior questão politica do mundo hoje, bem sabe a dita maior democracia do Mundo, com seu presidente negro, suas vítimas de atentado terrorista,  sua expansão imperialista belicista e seus discuros intramuros raivosos, racistas, protestantes e ultraconservadores de plantão.