terça-feira, 7 de outubro de 2008

Ensaio sobre a condição humana, não sobre cegos

O hábito nos faz cegos, já disse o filósofo alemão Georg Hegel. Que dizer então de uma repentina epidemia que faz fechar os olhos de toda uma sociedade, a começar por algumas centenas que são levadas ao confinamento de uma quarentena para não espalhar a peste aos demais cidadãos? Trata-se mesmo do enredo do livro do genial escritor português José Saramago, "Ensaio Sobre a Cegueira", transformado em filme pelo diretor Fernando Meirelles, produto, que pelo mau hábito "cego" de quem sempre se sente marginalizado por suposto preconceito, foi criticado pela Federação Nacional dos Cegos de Maryland (NFB). Foi dito que o filme traz os cegos como debéis mentais, incapazes de fazer qualquer coisa.

A Federação não enxergou que a história, inusitada e de uma sensibilidade inauditas para esse blogueiro, transcende à mera questão de se pessoas com deficiência visual são mais ou menos incapazes que as outras. O enredo é um convite provocativo para reflexão sobre que valores a humanidade se ergue. Sobre a condição e natureza humanas frente a situações limites. Quando traz a protagonista como a única a enxergar, Saramago reforça, ao meu ver, o traço metafórico contido nas entrelinhas do enredo, a saber, como que traduzindo, de que é sofrido, duro e cruel enxergar a realidade tal como ela é, mas é também preciso saber dela com clareza para fazer valer a esperança de um futuro mais promissor. Enxergar naquele contexto era ao mesmo tempo dádiva e martírio!

Por isso é de um reducionismo tacanho trazer tal obra-prima a questões especificamente ligadas a uma deficiência, no caso, a visual. Até porque se do filme e do livro se fosse retirar qualquer questionamento pertinente seria: estamos todos cegos, mesmo enxergando, ao caminho que estamos levando a humanidade? Lembro-me (algo parecido, não consigo reproduzir fielmente as palavras usadas) da última frase intimista e reflexiva do narrador em relação à protagonista (a médica que conseguia enxergar), instantes depois de o primeiro personagem a ficar cego recobrar a visão: "Ela pode está se pergutando: agora eu voltei a ficar cega?". E eu fico pensando: precisamos apagar todas as luzes para depois procurar um bendita vela?

Um comentário:

Anônimo disse...

Tabinha,
Você chegou a ler a resposta do Saramago acerca da crítica feita pela NFB? "Eles não podem opinar sobre algo que não viram."
Se o Saramago não fosse português, diria que essa foi a resposta mais sarcástica (e genial!) que alguém poderia dar. :)