segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Crônica da Previdência

O Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) é a encarnação de um Estado sádico. O segurado chega em uma de suas agências para um infame teste de paciência e tolerância, espécie de tortura chinesa baseada num perverso processo burocrático, que dilacera a autoestima e esperança de um povo já sofrido e esquecido. Enquanto isso, seus representantes, funcionários embrutecidos pela incapacidade de serem mais do que operadores, às vezes preguiçosos e incompetentes, de um sistema falido, já são indiferentes ao grave desrespeito à cidadania, e chegam a gracejar dela.

As respostas, as explicações são sádicas, mas sobretudo as circunstâncias cotidianas e o ambiente onde elas se configuram... Às 6h30, já se formam filas do lado de fora da agência. Seguranças, ao mesmo tempo rudes e gentis, começam, às 7h, a organizar as pessoas por hora marcada: fila para quem tem perícia às 8h, às 9h, 10h, e assim em diante, não necessariamente nessa mesma ordem. Uma vez dentro da agência, é enfrentar nova fila, com carteira de identidade em mãos, para adquirir uma senha e depois esperar, valendo-se de orações fortes, o tempo do Instituto ser condescendente, sua senha ser elegida entre centenas aleatoriamente selecionadas,  e finalmente ser encaminhado à antessala de espera para realização da avaliação do médico-perito.

Pois é, meu caro, a decadência do INSS é uma velha conhecida, mas experimente sofrer pessoalmente nas mãos desse grande sucessor do Marquês de Sade. O começo de 2010 reservou-me a vez de sentir na pele o sofrimento de milhões de compatriotas, com os quais jamais tivera compartilhado verazmente de tamanha humilhação, ainda que, como repórter, já a tivesse registrado, infelizmente com versos jornalísticos frios.

No momento que escrevo esse texto sem graça, o pior para mim passou, embora saiba que milhares de cidadãos vilipendiados ainda "vegetam"  à espera da bendita ou maldita perícia. Depois de três tentativas frustradas, ou por falta de médicos ou por "quedas" do sistema, finalmente fui avaliado por um perito no último dia 14, passados 38 dias, desde quando a empresa me afastou do trabalho por conta de uma lesão no dedinho da mão direita. Fui agraciado por boas orientações de terceiros e tive a sorte de poder me dirigir à superintendência baiana do Instituto, no Comércio, e pedir à chefe-geral do setor de perícia do Estado a realização imediata de minha avaliação médica. Só assim consegui adiantar a perícia, já marcada para o próximo dia 19 de fevereiro, quando eu iria completar mais de dois meses sem receber um tostão furado.

Lembro daquele dia 14 com tristeza, embora essa minha breve saga previdenciária tenha encerrado ali seu primeiro capítulo - não sei quantos outros virão. Minha senha, número 194, demorou mais de duas horas para aparecer no display. Na espera, observava os cartazes propagandísticos do governo pendurados pela agência: "Previdência Social. Um novo tempo para o Brasil e para você". Entendo. Com o "novo" se quer dizer mais um período de sofrimento e humilhação.

Pela antessala, dezenas de agoniados com os olhos vidrados no display, com pencas de exames nas mãos. Ao meu lado, uma mocinha serena, de semblante emudecido, revirando páginas de um livro intitulado "Felicidade ou Sofrimento: qual a sua escolha"? Ao fundo, os berros de uma senhora cega: "Gente, o perito nem tirou os meus óculos, não quis meus exames...! A gente temos nossos direitos. Se eu não for atendida hoje, vou chamar a polícia!". Era a crônica da sádica previdência, nua e crua.

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